PERDAS
E DANOS DE UM PROJETO DE PODER. USO POLITICO DOS FUNDOS DE PENSÃO ESTATAIS
CAUSA PREJUIZOS E AMEAÇA PAGAMENTO DE BENEFÍCIOS
Por José
Casado, Danielle Nogueira, Ramona Ordoñez e Bruno Rosa - O Globo, 21 DE
FEVEREIRO DE 2016
De segunda a sexta, é
tudo sempre igual. Sai de casa cedo, no Jardim América, Zona Norte, viaja uma
hora até o Centro do Rio e passa o dia à espera de um serviço de despachante no
entorno da sede da Petrobras, onde trabalhou um terço da vida. Deixou a
estatal, em 1993, levando um plano de previdência anunciado na empresa como a
garantia de um “futuro mais tranquilo”.
Aos 71 anos, Livaldo Pereira de Souza é um
aposentado preocupado com o seu futuro e o de outras 150 mil pessoas que, como
ele, apostaram no fundo de previdência da Petrobras:
— Não é
possível que a Petros possa estar em situação difícil — hesita. — Quando mais
vou precisar, ela não poderá pagar minha pensão? Como um fundo como a Petros,
que tinha um dos maiores patrimônios depois da Previ (Banco do Brasil), pode
estar em situação difícil? Isso só pode ser má gestão dos dirigentes, que
sempre foram nomeados por indicação do governo federal.
Aflição similar há um
ano consome o cotidiano em Brasília de Maria do Socorro Ramalho, de 56 anos. Ex-funcionária
da Caixa Econômica Federal, ela começou a ouvir rumores sobre uma crise no
fundo de previdência Funcef. O boato virou realidade numa segunda-feira, 13 de
abril, quando ouviu o presidente da Funcef Carlos Alberto Caser confirmar o
déficit:
Rombo em Petros, Funcef e Postalis aumentou R$ 3,7 bilhões ao mês em
2015
— Foi chocante, porque
eles viviam falando que estava tudo bem.
Maika, como prefere ser
chamada, soube de uma mobilização dos sócios do fundo dos Correios. Aposentados
da Funcef e do Postalis foram ao Congresso pedir ajuda para obter informações
sobre a situação das contas. Ela descobriu que a situação no Postalis é bem
pior que na Funcef.
Em quatro meses de
ativismo, ela percebeu também como é a elevada sensibilidade do Legislativo às
pressões do funcionalismo: a Câmara abriu uma CPI dos Fundos de Pensão e o
Senado já tem outra na fila.
Sobram motivos. Um
deles é o tamanho do déficit na Petros (da Petrobras), Funcef (Caixa) e
Postalis (Correios): R$ 29,6 bilhões, pela última medição governamental, em
agosto do ano passado.
Outra razão é a
velocidade em que o rombo aumenta: média de R$ 3,7 bilhões ao mês, até agosto.
Nesse ritmo, os balanços de 2015 de Petros, Funcef e Postalis, cuja divulgação
está prevista para abril, devem fechar com perdas de R$ 44,4 bilhões — um valor
sete vezes maior que as perdas reconhecidas pela Petrobras com corrupção.
O pagamento dessa
fatura será dividido ao meio entre associados de Petros, Funcef e Postalis e as
estatais patrocinadoras — ou seja, pela sociedade, porque as empresas são
controladas pelo Tesouro Nacional. No Ministério da Previdência e na CPI,
considera-se provável que os 500 mil sócios dos três fundos atravessem as
próximas duas décadas com reduções nos rendimentos. De até 26% no caso do Postalis. Roubaram meu dinheiro
— desabafa Jackson Mendes, aposentado com 42 anos de trabalho nos Correios.
Professor de Matemática,
Mendes integra o grupo que levou a Câmara a instalar a CPI. Ele se diz
convicto:
— Fizeram investimentos
mal explicados e o dinheiro virou pó.
A maioria dos
responsáveis pelos déficits das fundações públicas tem em comum a origem no
ativismo sindical. Nos últimos 12 anos, os principais gestores dos fundos de
Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e Correios saíram das fileiras do Sindicato
dos Bancários de São Paulo.
É uma característica dos
governos Lula e Dilma, e as razões têm mais a ver com perspectivas de poder e
negócios do que com ideologias. Os sindicalistas-gestores agem como
força-tarefa alinhada ao governo. Compõem uma casta emergente na burocracia do
PT. Agregam interesses pela capacidade de influir no acesso de grandes empresas
ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), fonte principal de recursos
subsidiados do BNDES. Onde não têm hegemonia, por efeito do loteamento administrativo,
convivem em tensão permanente com indicados pelo PMDB e outros partidos
PT se organizou para utilizar as fundações públicas como instrumento
de governo
O uso dos fundos de
pensão estatais como instrumento de governo é um traço peculiar do modo de
organização política brasileira. Moldadas no regime militar, as 89 fundações
públicas existentes dispõem de uma reserva de investimentos (R$ 450 bilhões no
ano passado) que seduz governantes: permite-lhes vislumbrar a possibilidade de
induzir iniciativas econômicas, por meio da participação dos fundos na
estrutura de propriedade das empresas envolvidas. Petros, Previ, Funcef e
Postalis, por exemplo, concentram dois terços do patrimônio dos fundos
públicos.
Essas entidades
paraestatais cresceram nas privatizações iniciadas por Fernando Collor e Itamar
Franco. Com Fernando Henrique Cardoso, passaram ao centro das mudanças na
mineração (Vale) e nas comunicações (Telefônicas).
Quando chegou ao
Planalto, em 2003, Lula estava decidido a ampliar esse canal de influência
sobre o setor privado, pela via da multiplicação da presença dos fundos de
pensão estatais e do BNDES no quadro societário das empresas.
Havia um projeto,
desenhado desde os primórdios do PT e da Central Única dos Trabalhadores, por
iniciativa de Luiz Gushiken, então presidente do Sindicato dos Bancários de São
Paulo.
Tipo incomum, ascendera
à liderança sindical convocando greves a bordo de terno e gravata. Trocou a
militância no comunismo trotskista pela composição com Lula, líder dos metalúrgicos,
a partir de uma conversa de botequim. Ajudou a escrever o primeiro estatuto,
presidiu o PT, elegeu-se deputado federal três vezes e se tornou um dos mais
influentes assessores de Lula.
Foram os negócios nada
ortodoxos entre fundos estatais e empresas privadas durante o governo Collor,
em 1991, que levaram Gushiken e dois diretores do sindicato paulistano, Ricardo
Berzoini e Sérgio Rosa, a abrir o debate dentro do PT sobre o potencial
político dos fundos de pensão — até então percebidos como meros instrumentos
governamentais de cooptação de sindicalistas.
No ano seguinte, a
cúpula político-sindical do PT elegeu bancários para diretorias da Previ e da
Funcef, derrotando a velha guarda da Confederação dos Trabalhadores nas
Empresas de
Crédito.
O grupo avançou com a
eleição de Berzoini à presidência do sindicato paulistano, com Sérgio Rosa e
João Vaccari Neto na diretoria. Meses depois, esse trio teve a ideia de entrar
no ramo imobiliário com apoio financeiro dos fundos de previdência: nascia a
Bancoop, cooperativa habitacional, hoje alvo de múltiplos processos por suposto
desvio de dinheiro para campanhas do PT e calote em mais de dois mil clientes.
Gushiken decidiu não
disputar o quarto mandato de deputado federal pelo PT, em 1998. Berzoini ficou
com a vaga. Elegeu-se, mas fez questão de continuar na direção da Bancoop até a
campanha presidencial de Lula, em 2002.
Na sede da CUT,
Gushiken instalou um curso para formação de sindicalistas em Previdência
Complementar. Sinalizava o rumo nas apostilas: “No Brasil, o fundo de pensão
como fonte de poder ou como potente agente de negociação nunca foi objeto de
discussão nos sindicatos (...) Existe a possibilidade, não remota, de que este
monumental volume de recursos, oriundos do sacrifício de milhões de trabalhadores,
venha a se transformar num gigantesco pesadelo para estes mesmos
trabalhadores”.
O grupo testou o
potencial de um fundo estatal na campanha presidencial de 2002. Sérgio Rosa
estava na diretoria de Participações da Previ, onde decidem-se os investimentos.
Numa quinta-feira, 9 de maio, ele despachou cartas a uma centena de
conselheiros do fundo em empresas privadas. Pediu informações sobre como a
disputa política “está sendo abordada na empresa em que nos representa” e “qual
o posicionamento” das companhias privadas quanto à “participação efetiva no
processo”.
Naquele ano eleitoral,
as aplicações da Previ no mercado de ações foram quadruplicadas. Adversários
sindicais, como Magno de Mello e Valmir Camilo, relacionaram as aplicações da
Previ com doações de empresas privadas para Lula e 254 candidatos do PT em todo
o país.
Eleito, Lula deu à
burocracia sindical 11 dos 33 ministérios e partilhou diretorias na Petrobras,
Banco do Brasil, Caixa e Correios com PMDB e PTB, entre outros integrantes da
“maior base parlamentar do Ocidente”, como definia o ministro da Casa Civil,
José Dirceu.
Gushiken ficou com a
Secretaria de Comunicação; Berzoini foi para o Ministério da Previdência; e
Vaccari assumiu o sindicato em São Paulo. Eles definiram com Lula o comando dos
maiores fundos de pensão estatais a partir do núcleo do sindicalismo bancário.
Assim, Sérgio Rosa ganhou a presidência da Previ, Wagner Pinheiro ficou com a
Petros e Guilherme Lacerda foi para a Funcef. Ao PMDB reservaram o menor,
Postalis.
Na Previdência,
Berzoini fechou o circuito com a nomeação de um ex-conselheiro fiscal da
Bancoop, Carlos Gabas, para a secretaria-executiva do ministério, que controla
o órgão de fiscalização dos fundos de pensão, a Previc. Passaram os anos
seguintes testando na prática o projeto que haviam imaginado na década de 80.
Os bons companheiros estavam no poder.
Fundos apostam em negócios de alto risco, com
apoio do governo
Em 12 anos, fundações acumulam prejuízos
bilionários
por José
Casado, Danielle Nogueira, Ramona Ordoñez e Bruno Rosa
21/02/2016 7:00 / Atualizado 21/02/2016 9:37
RIO — Fundador de uma empresa que
recebeu R$ 3 bilhões em investimentos dos fundos de pensão da Petrobras, da
Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil, João Carlos Ferraz inquietou-se
na cadeira ao ouvir as perguntas:
— O senhor disse que num momento
de fraqueza recebeu propina milionária no exterior? Também prometeu devolver
uma parte e repatriar outra?
O antigo presidente da Sete Brasil
respondeu quase sussurrando: — Gostaria de reafirmar que eu vou permanecer em
silêncio.
Uma voz alta surgiu no plenário da
CPI dos Fundos de Pensão, ironizando: — Se é verdade, vai tomar um baita
prejuízo, porque levou propina com o dólar a dois reais e pouco e vai devolver
a quatro e pouco... Talvez seja um dos bons investimentos que a Petrobras fez
nos últimos tempos.
Os fundos de previdência estatais
ainda se encontram no lado menos visível das investigações sobre corrupção nos
negócios da Petrobras. Mas as evidências dos enlaces em negócios suspeitos se
espraiam por diferentes inquéritos. E são realçadas pelo acervo de prejuízos
bilionários que as fundações acumularam nos últimos 12 anos.
O caso da Sete Brasil é exemplar.
Criada no governo Lula, dentro de uma Petrobras eufórica com o pré-sal, previa
construir 28 navios-sondas para a petroleira. Os fundos Petros e Funcef
compraram 18% das cotas do empreendimento. A Previ se limitou a 3,5%.
PROPINAS PARA GERENTES DA
PETROBRAS
Após meia década, empresa e sondas
só existem no papel. O dinheiro das aposentadorias virou pó: Petros e Funcef já
perderam R$ 828 milhões, e Previ, R$ 161 milhões. Os fundos justificam o
fracasso indicando as “perspectivas favoráveis” do projeto em 2010, quando o
barril de petróleo custava US$ 100 (fechou a semana a US$ 33).
Sobraram propinas, como as
recebidas por João Carlos Ferraz e Pedro Barusco, ex-gerentes da Petrobras que
montaram o projeto, se aposentaram na estatal e viraram executivos da Sete
Brasil. Na Justiça fizeram acordos de delação, prometendo devolver os subornos:
Barusco contabilizou US$ 97 milhões (R$ 388 milhões); Ferraz declarou US$ 1,9
milhão (R$ 7,6 milhões), e batalha para evitar o sequestro judicial dos bônus
recebidos (R$ 11,5 milhões) na presidência da companhia.
Os déficits nas fundações públicas
têm origem em atos típicos de gestão temerária, em negócios obscuros e nos
frágeis sistemas de controle.
— É notável que os fundos de
pensão estatais integrem um circuito bilionário de negócios sem controle
efetivo —
diz o deputado federal Raul
Jugmann (PPS-PE). — Os dirigentes não respeitam as regras, a fiscalização faz
vista grossa, a Comissão de Valores Mobiliários não tem poder para punir, e o
Congresso não entende, só se interessa pelo assunto episodicamente.
Organismos de fiscalização recebem
apelos constantes para intervenção nos fundos estatais deficitários.
Responsável pela supervisão setorial, a Previc, do Ministério da Previdência,
responde com a lembrança “dos limites legais de sua competência”, e a
necessidade de “avaliar tecnicamente pressupostos, necessidade e
consequências”.
.O
histórico recente dos investimentos desses fundos de previdência indica que
apostas de alto risco, como a realizada na Sete Brasil, não foram acidentais.
Havia um grupo de sindicalistas-gestores trabalhando de forma coordenada. Em
agosto de 2003, eles se reuniram com Lula na sede da Petrobras, no Rio. Saíram
convencidos de que deveriam apoiar integralmente todos os projetos
governamentais de infraestrutura.
O alinhamento com o Palácio do
Planalto, orientado pelo secretário de Comunicação Luiz Gushiken,
intensificou-se a partir da autorização para confrontar parceiros privados —
como o grupo Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas—, considerados impeditivos
à participação mais direta no controle de empresas de telefonia, privatizadas
no governo anterior. Estabeleceram uma rotina de reuniões, uniram recursos e
partiram para a batalha societária.
Venceram. Desde então, com
respaldo do Planalto, houve uma escalada nas aplicações de alto risco com o
dinheiro das aposentadorias, a despeito de contra-indicações jurídicas internas
ou da oposição no conselho fiscal.
— Na Petros adotou-se um estilo
extremamente autoritário, invertendo-se a lógica da governança— conta Fernando
Siqueira, ex-representante eleito nos conselhos fiscal e deliberativo.
Apesar das perdas e danos, o
legado do loteamento político é defendido pelos atuais diretores dessas
fundações, também originários desse proceso. A Funcef, por exemplo, admite
“resultados deficitários”, mas os atribui ao “fraco desempenho das economias
nacional e internacional”. Acha que se constitui num “modelo" de
governança. A Petros se afirma empenhada em “continuar reforçando” controles.
No Postalis rejeita-se a palavra “déficit”. Diz-se apenas que “não há previsão
de superávit”.
Para aposentados como Livaldo
Pereira de Souza, sócio da Petros, Maria do Socorro Ramalho, da Funcef, e
Jackson Mendes, do Postalis, resta uma certeza: sua renda será reduzida. Com
sorte, talvez consigam recuperá-la antes do Carnaval de 2035
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ANASPS/ON LINE/Extra
Ano
XVIII, Edição nº 1.462
Brasília,
18 de Março de 2016.
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